segunda-feira, 24 de março de 2014

Vovó




Dona Francisca, toda vez que chego em casa e vejo seus cabelos brancos e curtos decorando o cômodo da sala com cortinas brancas, eu sinto o meu coração mais leve, mais brando. E então eu te olho de pertinho assim e você está sempre com aquelas roupas longas, as vezes coloridas, e um par de meias vestindo seus pés - sempre driblando o frio que insiste, de joelhos e aos seus pés, em repousar em sua companhia amena. E você perde alguns minutos da sua novela só pra me fazer a pessoa mais sortuda do mundo. Dona Nem, a senhora me olha e joga aquele riso que fazem todos os anos da sua vida ficarem tão evidentes nos traços calmos do seu rosto. Depois eu te beijo, da forma mais delicada que eu posso reunir, na parte mais alta da cabeça, talvez querendo sugar um pouco dessa áurea que enfeita o redor do seu juízo e, sem sucesso, eu repito, feliz e grato, esse hábito como se minha vida dependesse disso - é a parte mais feliz da minha rotina. E aqui, nesse receptáculo da minh'alma, eu pintei o símbolo da maior obra de arte que já apreciei em todas as vidas que já vivi - você. Vó, das três flores que pintei no meu braço direito, você é a que eu mais cuido, a que eu mais amo, a que eu mais rego. Vovó, você me ensinou a ter coragem, calma e a rezar. Me ensinou a importância das flores e o poder das plantas e abraços. Me disse que o chá tem que ser feito com carinho e paciência. Me ensinou a amar. Me ensinou que algumas coisas devem ser conquistadas, e outras apenas não podem ser perdidas. Dei um passo atrás imaginário, depois que afastei os meus lábios da sua cabeça e senti meu coração batendo fora do meu peito. Sabe, vovó, acho que devo ter assinado algum tipo de contrato com a vida, e nele, com certeza, tinha uma cláusula que dizia: "Seu coração tem que nascer primeiro."

segunda-feira, 17 de março de 2014

Forgive me, Father. V




- Eu não aguento mais isso, padre. Por quê eu sofro tanta injustiça? Eu tenho orgulho da minha cor. Por que o mundo é tão preconceituoso afinal?

- Porque o homem é um grande filho da puta!

O padre disse isso em um tom triste e agressivo. Sua voz ainda sangrava, talvez por ter conhecido a discriminação na própria cor da sua pele.

- Queria que todos nós fossemos cegos - desejou o rapaz, de uma forma desajeitada, tentando dar um ar de esperança. -, talvez assim o preconceito seria obsoleto em uma sociedade que enxerga apenas com coração.

- Duvido muito, filho. - desacreditou o padre.

- Por quê?

- Porque o homem iria achar a porra de um jeito para dividir as pessoas, acredite!

- Mas como? - insistiu o rapaz.

- Eu tenho certeza que se todos nós fôssemos cegos, ele iria ser preconceituoso com o timbre da própria voz; e assim quem falasse mais grosso seria melhor que o outro. E o resto da história você já conhece...

O padre deixou a frase morrer no ar. Fechou a mão, apertando forte o ponho, a unha rasgando o tecido da palma da mão. E disse da forma mais triste que pode reunir:

- Tiago capítulo 2, versículo 9.

- O que diz lá?

- "Mas, se fazeis acepção de pessoas, estarão cometendo pecado e serão condenados pela Lei como transgressores."

O padre pensou sobre o que disse, e perguntou:

- Sabe qual é a pior raça na verdade?

- Qual? - perguntou o rapaz de uma forma curiosa.

- A humana!

Forgive me, Father. IV



A moça que entrou no confessionário tinha uma marca de sol do dedo anelar esquerdo e um olhar condescendente no rosto. Ela tolerava o mundo, suportava o renascer da sua própria alma depois de um divórcio premeditado - e tudo o que ela precisava era um pouco de compreensão.

- Padre, perdoe-me pois eu pequei.

- Pois não, minha filha. Em que posso ajudar?

-  Larguei o meu marido faz 3 meses, e agora eu sou independente. Estou atrás do meu orgulho como mulher. Jamais me casarei novamente!

- Não me diga...

- Como assim?!

- Separações. Eu fico um pouco triste, entende? Afinal eu casei a cidade inteira... Inclusive você e seu ex-marido.

- O senhor não teria um padre, ou bispo, para poder se confessar e contar suas próprias tristezas? Não posso absolver o senhor, padre.

- Desculpe, perdi o foco. Continue...

Ela organizou os pensamentos sem saber o que dizer.

- Mulheres divorciadas - disse o padre. - me fazem ter um tipo de honestidade sexual aflorada. Até hoje não sei por que. Mas me diga, minha filha...

- Pode me chamar de viúva - ela disse em um tom amargo, interrompendo o padre. -, pois aquele verme morreu para mim!

- Não me diga...

- Como disse?!

- O que você procura, moça?

- O amor-próprio.

- Não posso te ajudar - disse o padre -, aqui nós ensinamos a compartilhar o amor, não a escondê-lo só para si mesma. Você está associando o sagrado e hipócrita laço do matrimônio com a miserável oportunidade de ser infeliz para o resto de sua vida. O casamento devia ser um rótulo para a felicidade, e não uma mola propulsora pra a liberdade do divórcio.

- Não acho que me amar seja pecado, padre.

- E não é. Você desacreditou do amor compartilhado, dividido. O mundo não precisa disso. O amor-próprio é revolucionário, motivador e poético, mas com certeza não é a resposta. É bastante contemporâneo, mas amar a si mesmo, e somente a si mesmo, é fuga de ser o que você nasceu pra fazer: amar o próximo.

- Por quê? - perguntou a moça, como se ele não tivesse uma resposta satisfatória que justificaria sua ideia anterior.

- Porque amar a si mesmo, e fazer disso a sua motivação de vida, é como fazer cócegas à si mesmo; não tem a menor graça. 

Ela passeou, de leve, com a ponta do dedo indicador direito em cima da marca de sol que a aliança deixou, e refletiu por alguns instantes sobre as gargalhadas que deixará de dar seguindo esse caminho tão solitário.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Forgive me, Father. III





Entra um rapaz assustado, com os olhos injetados de terror e medo.

- Padre, eu descobri que tenho câncer terminal.

- Sorte sua. - disse o padre.

- Você é louco? Estou morrendo, não percebe?

- Como um bom cristão - disse o padre em um tom desdenhoso e irônico, quase zombeteiro -, você devia saber que a morte não é o fim da vida.

E deixou escapulir um som. Foi quase um riso.

- Mas não quero morrer. O que vou fazer agora?

- Agora você está livre!

- Não entendo, padre. Estou livre de que?

- Filho, nós, seres humanos, temos consciência da nossa própria vida, sabemos que estamos vivos, e que um dia iremos morrer, e isso é o que nos diferencia dos pobres animais. Mas temos a ilusão que a morte se atrasa, não sabe nosso endereço ou não se importa muito conosco. Pensamos que o dia da nossa morte nunca chegará. Porém, agora, você tem a certeza do fim da sua vida! A morte carimbou no seu peito um prazo de validade.

O rapaz olhou torto.

- Economias - continuou o padre. -, garantias, promessas; isso tudo não importa mais! Você pode largar o seu empreguinho de merda e conhecer os lugares que sempre teve vontade de conhecer. Acordar meio-dia, não pagar o cartão de crédito, andar de balão, transar na rua, andar por aí.

O padre estava empolgado. A impressão é que trocaria de vida com o rapaz no mesmo instante.

E continuou:

- Cara, você teve a sorte de saber, por antecipação, que você vai morrer. É como se a morte mandasse um aviso pelo correio, uma carta com letras de forma dizendo que está ela chegando para uma visita, entende?

O sujeito fez cara que não.

- Junto com a carta, filho, você recebeu a chave que te liberta das algemas imaginárias do sistema. Agora você pode fazer o que sempre teve vontade de fazer de verdade, e por algum motivo deixou pra lá, pra depois. Agora você encontrou um motivo de verdade para viver.

O rapaz apertou o queixo, mexendo de leve na barba por fazer. Estava pensando.

O padre disse, dando ênfase em cada palavra:

- Verità è visibile solo attraverso gli occhi della morte.

- Quê?

- É italiano. Parafraseei alguém que não me lembro o nome. Mas era muito esperto por sinal.

- Humm. E o que quer dizer?

- "A verdade só pode ser vislumbrada através dos olhos da morte."

quinta-feira, 13 de março de 2014

Forgive me, Father. II



- Padre, o mundo está perdido! O noticiário mostra o filho matando pai, padastro estuprando enteadas. Gays, lésbicas, ladrões, corruptos, miseráveis e bêbados filhos da puta. A vida pede basta! E eu também! Não aguento mais esse mundo podre!

- O que você cheirou, cara?

- Como disse, padre?

- Procure ver o lado bom.

- Como?

O padre empurrou a vida do cigarro para o fim, apagou o cigarro na madeira do confessionário e guardou a quimba na batina, em um bolso secreto.

- Gosta do pôr-do-sol?

- Sim. Mas o que isso tem a ver com...

O padre o cortou feito cerol.

- E do brilho das estrelas?

- Claro. Mas onde o senhor quer...

Outro corte.

- Filho, você sabia que as cores mais incríveis que um fim de tarde pinta no horizonte depende, em parte, do quanto de poluição existe na ar? Na verdade a luz solar não é amarela e nem vermelha, é branca. E o branco resulta da soma das sete cores do arco-íris - o violeta, o azul, o anil, o verde, o amarelo, o laranja e o vermelho. A nossa percepção do sol muda justamente por causa das irregularidades na camada de ar.

- Não sabia, não, seu padre.

- E você sabia que o brilho que as estrelas que você vê, provavelmente é de uma estrela falecida que provavelmente não existe mais. E que na verdade o que você ver no céu é apenas uma fotografia velha?

- Não. - o rapaz respondeu triste.

- Filho, se você for cético com o mundo, vai acabar perdendo toda a graça da vida. Veja o lado bom.

O rapaz saiu da única capela da pequena cidade e viu um incrível degradê no céu - com muitos tons de laranja e vermelho ocre. O sol estava se deitando sonolento, cansado e doente de tanta impurezas no ar, porém, sem reclamar. O moço viu crescer, sem pressa, um riso em um rosto cheio de marcas de tristezas.

Querida Karen, XI




04 de agosto de 2015.
Querida Karen,


Era uma terça-feira de agosto e nós andávamos por aí, à toa, sem destino, pela rua, sem rumo. O vento suave, não fazia frio, o céu estrelado, a noite sem lua. Um dia normal. Deitamos na grama.

Naquele dia eu te falei sobre as estrelas.

- Como são lindas. - você disse.

- Muito.

E era mesmo.

- Sabe, Karen - eu disse, olhando para o céu -, alguma delas já morreram, e a luz que nós ainda vemos, e apreciamos, são apenas um retrato antigo de alguns astros mortos que insistem em aparecer, como os fantasmas.

- Mas ainda brilham. Veja.

E, com um olho fechado e o outro aberto - feito mira -, você apontou seu dedo indicador para o céu escuro como se sua vida dependesse disso. Você sorria com os olhos.

- É, eu sei, é lindo.

E eu admirei o vento morno brincando com sua franga loira.

- Hank, então por quê ainda brilham se estão mortas ?

- Algumas coisas nunca deixam de brilhar, mesmo mortas. - eu disse me lembrando do tempo sem você, e de como eu acreditei em nós quando ninguém mais acreditava, nem você. - Mortas como Jesus, Buda, Bob Marley e Gandhi. Essas estrelas também nunca vão deixar de brilhar. - eu disse fazendo graça.

Você sorriu, Karen.

- Por causa da distância. - eu disse, respondendo sua pergunta de uma forma mais séria - Algumas delas estão a mais de 800 anos-luz da terra, e é por causa desse atraso que nós ainda vemos sua luz.

Você absorvia tudo feito esponja.

- Você não devia mais reclamar dos meus atrasos, Karen. - eu disse sorrindo.

- Bobo. Aposto que se eu me atrasar você não vai pensar o mesmo.

- Depende. Se não for a sua menstruação.

E você riu mais ainda. Com os olhos injetados, a boca bem aberta, desajeitada.

Depois se calou. De repente você ficou triste.

- Então tudo está se acabando aos poucos ? - você perguntou assustada, sentindo o medo de não mais existir mitos e lendas que dizem que seus dedos vão se encher de verrugas por apontar as estrelas.

- Claro que não. Quando uma estrela falece, ela explode e aí criam-se corpos-celestes, chamados de supernova, cuja a massa é aproximadamente 10 vezes superior à massa do nosso astro-rei, o sol. Karen, então quando uma estrela deixa de viver, na verdade ela ...

- Ela cria mais vidas, mais estrelas, mais luzes. - você completou a frase aliviada, como se tirasse todo o gosto insosso da sua boca só de mastigar essa ideia.

- Isso, Karen.

Te beijei sorrindo.

 - No fundo, as estrelas são como o nosso amor, Hank. - você disse.

E eu ri, sorri estalando meus dedos - talvez me punindo por zombar de uma verdade em que acreditava como religião. E então me senti como um cristão gargalhando de uma piada herege.

- No fundo, bem no fundo, são mesmo.

Eu disse satisfeito, com o cruzeiro do sul deitado ao meu lado - de cabelo loiro, de riso largo, de perfume lindo, usando vestido florido rosa e que sempre apontava minha bússola para seu norte.

Unfaithfully yours,
Hank.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Pare, pense e pense mais.




Motoristas seguravam seus queixos, impacientes, enquanto aguardavam o sinaleiro dar a luz verde para poderem seguir com suas vidas de merda. Alguns mexiam em seus smarthphones, desatenciosos aos malabaristas que recreavam e preenchiam, por alguns trocados, aqueles eternos três minutos tediosos. Mulheres buscavam o próprio reflexo para garantir sua beleza - umedeciam os lábios e apertavam os olhos, aplaudindo em silêncio a perfeição de uma maquiagem bem feita. Jovens giravam, com pressa, a agulha do rádio AM para procurar algum som maneiro, ou da moda. Curiosos julgavam os pilantras de esquina e observavam eles contarem vantagem com garotos mais novos - provavelmente repetindo a mesma baboseira que escutaram quando eram mais moços dos malandros mais velhos, talvez ali, naquela mesma esquina. Idosos olhavam por cima do vidro dos óculos, atenciosos ao tráfego. Adolescentes deixavam o carro apagar e sentiam o poder do descontrole e toda a adrenalina que uma primeira volta no carro da auto-escola podiam fornecer. Crianças carentes batiam com os dedos dobrados em vidros fumês, enquanto faziam sua melhor cara-de-fome para poder convencer à todos da veracidade de sua pobreza e necessidade - na maioria das vezes sem sucesso. Em apenas três minutos observando eu vi: tediosos, distraídos, narcisistas, agitados, coniventes, sentenciosos, eufóricos, delicados, miseráveis, auto-piedosos e omissos. Eu decidi que gosto disso em Brasilia - a diversidade.

Forgive me, Father. I






- Me perdoe, padre, pois eu pequei.

- Desembucha!

- Como disse?

- Diga, meu filho.

- Que estranho, mas tudo bem. Padre, minha mulher me abandonou e eu desacreditei no amor, no casamento, em Deus...

- Continue amando - respondeu o padre -, apenas isso.

- Não consigo.

- Continue amando, oras!

- Olha isso não tem o menor sentido, padre!

O padre deu um longo trago no vinho e disse:

- Qual é a porra do sentido da vida?

- O quê? Ah, eu não sei ao certo.

- Me diga de uma vez!

- Eu não sei qual é o sentido da vida. Pronto!

- Mas no entanto você ainda continua vivendo ela ...

E deixou a frase morrer no ar.

- Entendi, padre. Finalmente eu encontrei a saída.

- Então já sabe o que fazer..

O rapaz suicidou-se três horas depois.

domingo, 9 de março de 2014

contrário do dia O





O dia do contrário


A noite começou com a primeira luz do dia.
Trabalhador honesto com um salário pica.
Nem tinha vento e os moleque lá, soltando pipa.
No congresso só trabalhava quem tinha ficha limpa.
E na esquina, neguinho só traficava poesia.

Nessa sexta-feira 13 me senti com sorte.
Meu coração que só apanhava, hoje ele bateu tão forte.
Na bandeira do Brasil estava escrito: "Igualdade ou Morte."
Aí nego se ligou que sol é o mesmo. Ele aquece o Lago Sul e a Ceilândia Norte.
No dia do contrário, parceiro, não tem ibope pra Reizin de camarote.

O pão que eu ganhei, que eu conquistei - grato, eu dividi.
Meu time não jogou legal, perdeu pro seu. Mas e daí?
Sua religião não importa, mané. Me dá um abraço aqui.
No baile alguém pisa no meu pé, e diz: - "Foi mal aí, parceiro, eu não te vi."
Dinheiro não passaria de um papel, sem valor igual capim.

Vi o sol nascer quadrado e eu nem tô preso.
Você não é o que tem no bolso e muito menos o seu emprego.
Pinóquio foi quem escupiu Gepetto.
He-man entendeu o lado do seu amigo, Esqueleto.
Nesse dia do contrário ta tão maneiro, tá difícil de encontrar defeito.

O céu todo vermelho, não tem um pontinho de azul.
Abri minhas asas e voei sem precisar de Red-bull.
Engravatados de sapato social mandando um Le-Parkour.
A cidade verde, limpa, cheirando a Bubbaloo.
Sei lá, no dia do contrário não encontrei motivos pra mandar ninguém ir tomar no cu !

Mudança



- Cara, não é por isso. Eu estou mudando...

Ele desacreditou.

- E por onde começou? Não vejo mudança alguma!

E então eu dei um sorriso bem gordo, mostrando o metal que envolve meus dentes. Ele me respondeu meio surpreso. Como se o aparelho nos meus dentes fosse mais uma questão estética, uma mudança de visual do que uma modificação no meu caráter.

- Como assim? Colocou aparelho e já sente que está mudando?

Ele sorriu.

- Cara, é uma metáfora. Não entende?

- E qual é então?

- Eu comecei cercando meus beijos.

Ele entendeu.