quarta-feira, 6 de abril de 2016

O barulho do mArtérias.





Minha noite foi pintada pelo próprio Sandro Botticelli, e você, Ana, foi a moldura amadeirada que pendurou essa memória em um lugar impossível de esquecer. E quando a carruagem virou abóbora, você estava ao meu lado; sentada de um jeito infantil e sorrindo só, como alguém que ouve sua música predileta no rádio ou chega a tempo no banheiro. Meus dedos passeavam pela sua perna, acariciando as penas, sem relevo, de uma ave de hábitos crepusculares. Ana, você estava à minha direita, e isso me deu uma visão privilegiada da sua pintinha que dorme um sono leve, do lado esquerdo, pertinho do seu olho escurecido pelas melaninas que não existem na sua virilha. Perceber essa borra-de-café dentro do seu olhar me deu sede e, então, umedeci meus próprios lábios e te beijei.

E me lembrei da primeira vez que te beijei, Ana. Foi na madrugada do dia 09 de fevereiro, ao som de Jack Johnson. Lá fora a chuva arruinava o que ainda restava da fogueira e, aqui dentro, ela era coadjuvante e promovia um solo - ou uma nova nota musical -, de um instrumento que era tocado pelo próprio deus, qualquer deus. Dei um passo, para atrás, imaginário e olhei para a minha própria vida; parece que o improvável voa pelo céu da minha boca: pai aos 17 e motorista aos 26. Complemente o contrário da sociedade e do praxe. Não seria uma surpresa eu encontrar a garota dos meus sonhos em pleno carnaval. Sou um boneco de ventrículo e a criança que brinca com meus fios tem um humor questionavelmente agradável.

O beijo terminou, como sempre. E fui teletransportado para um futuro distante. Na minha frente uma esponja com sabão. Eu limpava o para-choque de um carro simples, com adesivos familiares. Quatro pessoas: dois adultos e duas crianças, todos de mãos dadas.

- Em agosto temos um compromisso. - você disse, me trazendo de volta para aquele momento que nunca quis fugir. Você disse isso com tanta convicção, que pensei que estava escrito no zodíaco de hoje, no jornal que você detesta ler pela manhã.

- Uau. Nosso primeiro plano - eu disse sorrindo.

Eu falei isso com uma voz que não me pertencia totalmente. Como se fosse soletrada por uma criança que brinca, ou soprada, em forma de resposta certa, por algum espectador da vida que não vive mais.

[...]

E então, Ana, você tirou o seu amor como se fosse um crachá de fim de expediente.

- Tenho medo desses planos. - você disse de uma forma triste e decidida.

E eu me senti o jovem aventureiro que descobre, por um azar em viver demais, que o barulho do mar dentro de conchas, são, na verdade, apenas o ruído das nossas próprias artérias fazendo eco no tímpano.

E o seu amor foi algo que fui obrigado a abrir mão, Ana. E, como todos os amores desertores, se revelou doloroso e cheio de ressacas.

Tomei fôlego, mas só o bastante para acender o cigarro - que repousava dentro de uma caixinha branca, a nossa marca predileta - e te dizer essas palavras:

- Também tenho medo desses planos, Ana. Medo que eles nunca se realizem.


São 02:39, do dia 7 de abril de 2016.