domingo, 27 de abril de 2014

Dread de bronze



- Oi, - você disse. - quer dar uma olhada nas pulseiras? Tem essa aqui colorida, e também essa aqui que é a sua cara porquê ...

Não escutei mais nada. Sua roupa leve e grande para um corpo tão magrela, roubava sua idade em pelo menos uns quatro anos. Seu sutiã que não tinha a menor vergonha em aparecer apenas em um dos lados do ombro. Sem esmalte nas unhas, sem chinelos em seus pés descalços. A sobrancelha por fazer, assim como a costura da sua camisa um pouco rasgada. Vi seus lábios se moverem, abrindo e se fechando. De vez em quando sua língua passeava, com carinho, em seus lábios - umedecendo seu riso e vocabulário. Vi também sua boca tapando seus dentes brancos, feito teclas de piano, sempre que você sorria das próprias piadas, como se você tentasse abocanhar toda sinceridade daquela gargalhada que só você podia dar. Senti seu hálito morno tocar meu rosto, como em um agradável beijo de boas-vindas. E então você olhava para baixo e depois para cima, tentando procurar alguma resposta no ar sempre que eu fazia uma pergunta e, quando encontrava, você penteava, com o dedo indicador, seus cabelos ruivos e enferrujados para trás da orelha - era lindo ver você fazer aquilo, devia ser uma forma de massagear o próprio ego, ou, apenas, uma maneira inocente de maquiar sua capacidade de ser a única pessoa no mundo inteiro capaz de parar o tempo. O vento soprava seus dreads, amarrados de um jeito preguiçoso e desmazelado, e eu via o cobre do seu cabelo fazer uma dança desajeitada e curiosa em pleno ar - como um acrobata. Uma medalha de bronze, bem ali na minha frente, e eu reparei na minha própria preguiça de chegar em primeiro lugar. A tempestade perfeita, pensei.

- Vai levar alguma? - você insistiu perguntando, me trazendo de volta pra aquela conversa que eu imaginei tendo pela minha vida inteira. - Tá tão baratinho ...

terça-feira, 15 de abril de 2014

Visão da Adoradora da lua


A Adoradora da lua e o Boêmio, amante da natureza.





 Esse é um curto pedaço da história da Adoradora da lua. Presa em um corpo pequenino, sua mente vagueia nos mais distantes jardins, percorre os mais quilométricos campos, e quando lhe é permitido, em um deslize já põe-se debaixo da chuva, da lua, do vento... Não conhece muito da vida, mas o que lhe coube conhecer, ah... ela conheceu com amor! A Adoradora mora aonde o sol se põe, esse é o seu lar. E, neste dia, deitada na rede ela conversa com um tal Boêmio amante da natureza que cruzou um dos campos que ela percorria livre. O Boêmio, com pinta de malandro, em suaves versos e prosas, suavizou também sua resistência. Não se sabe ao certo quando suas ruas cruzarão novamente, mas o tal Boêmio e a Adoradora ainda tem muitos caminhos a percorrer. O que será que o futuro reservou para os tais jardins?

Por: Adoradora da lua.

Forgive me, Father. VII





- Me perdoe, padre, pois eu pequei.

- Sou todo ouvidos, filha.

Ela alisou, desajeitada, sua aliança dourada que vestia seu dedo anelar esquerdo. Respirou devagar e expirou forte. Olhou para o nada, talvez se concentrando no pensamento de salvação. Seu lugar no céu dependia da absolvição do padre. Sua perna esquerda sacudia involuntariamente, e ela se deu conta disso quando tentou enxugar o suor da palma das mãos no seu vestido preto e longo.

- Padre - disse ela -, eu traí meu marido.

- E como se sente ?

- Muito mal.

- Se arrepende?

- Absolutamente.

- Isso é bom. Foi sincera com seu marido sobre isso?

- Não posso.

- Entendendo...

- O que devo fazer?

- Ah, deixa pra lá. - disse o padre, vomitando o desdem.

- Hã? Mas o que a bíblia diz sobre isso?

- Adultério? Muito, muito grave...

- Não, sobre isso não. Eu digo sobre não contar a verdade para meu marido.

- Depende. Você conseguiria justificar guerras na bíblia, se quizesse.

Ela não disse nada.

- Mas como toda pessoa que vem até aqui, você também quer sair mais leve, mais confortável do que entrou. - disse o padre.

- Sim!

- Pois bem. Na biblia diz que aqueles que não tem acesso a sagrada palavra, podem ser salvos. - como os índios. Em 1 Coríntios 4,5 diz o seguinte: "Portanto, nada julgueis antes de tempo, até que o Senhor venha, o qual também trará à luz as coisas ocultas das trevas, e manifestará os desígnios dos corações; e então cada um receberá de Deus o louvor."

A mulher fez um gesto compulsivo de tirar e colocar a aliança, bem rápido. Como se ela fornicasse o próprio dedo no lugar mais inapropriado do mundo, dentro da casa do Senhor.

- Não entendo, padre. Essas metáforas fodem minha cabeça.

Ela não se desculpou pelo palavrão. Ela deixaria aquilo para outra confissão.

- Disse que, segunda a bíblia, até a própria ignorância pode ser a salvação. Deus realmente é muito bom.

Ela respirou aliviada. Fez o sinal da cruz e foi embora, não antes de agradecer o padre de uma forma ofussiva.

O padre deixou um sorriso cansado sair pelo canto da boca. Depois sussurrou bem baixinho, como um pensamento que fez uma curva, saiu pela boca e acabou criando som.

- Apocalipse 21,8: "Mas, quanto aos tímidos, e aos incrédulos, e aos abomináveis, e aos homicídas, e aos fornicadores, e aos feiticeiros, e aos idólatras e a todos os mentirosos, a sua parte será no lago que arde com fogo e enxogre; o que é a segunda morte." 

Depois de provar na bíblia que os mentirosos irão para o inferno, ele provou que os adúlteros também irão.

- Gálatas 5,19-21: "Porque as obras da carne são manifestas, as quais são: adultério, prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçaria, inimizades, porfias, emulações, iras, pelejas, dissensões, heresias, invejas, homicícios, bebedice, glutonarias, e coisas semelhantes a estas, acerca das quais vos declaro, como já antes vos disse, que os que cometem tais coisas não herdarão o reino de Deus"

 Justificar guerras na bíblia, pensou o padre.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Óleo e água.




Eu e ele somos como óleo e água. Fora o sobrenome, sangue que desliza em nossas veias e o redemoinho na parte de trás da cabeça, não temos nada em comum. Minha vovó chora baixinho lá no quarto, garantindo ser a última vez que ele me ofendeu. Meu avô pede calma. Minha mãe reza um pai-nosso, pedindo em oração que ele não me mate e justifique tudo em alguns capítulos da bíblia, onde Abel é morto por Caim. Meu pai sempre chega tarde do trabalho, cansado demais para essas coisas de família - eu não o culpo, a vida já foi muito injusta com ele. Primeiro ele fala nervoso, com o punho fechado, dizendo coisas que eu não sei bem o que é. Eu fico triste. Minha mãe agora pede pra eu dormir com a porta trancada - sempre com aquele semblante que implora uma necessidade de vida, porém, sem exigir questionamentos. Uma semana depois ele me abraça, sem pedir desculpas, e me trata como se eu fosse a única pessoa do mundo. Eu o amo ainda mais. Alguns dias depois lá vem aquela cara fechada, o senho franzido e o punho fechado. Foram tantas vezes que resolvi deixar a chave no trinco da porta do meu quarto. Eu sei que eu fui responsável por alguns cabelos brancos na cabeça da minha mãe; como naquela vez que quebrei o braço; ou quando fui pai; ou quando passava os dias em casa bebendo vodka pura, assistindo o DVD do Exaltassamba; mas isso é demais. Eu quero paz. Será que ele quer minha ajuda? Por quê ele não conversa comigo? Será que ele ainda me ama? Sei lá, sinto os sentimentos ficarem embaralhados - passei a ama-lo, mas sem gostar.

Irmão, por favor, não deixe a morte me abraçar pra você me entregar flores, que eu te prometo destrancar essa porta e jogar a chave fora, e se isso for impossível, eu invento três janelas pra você entrar no mundo do meu quarto.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Querida Karen, XII






08 de abril de 2014.
Querida Karen,


O amor não é cego; ele é preguiçoso, medroso e desmazelado. Cegos somos nós. E existem três tipos de cegos: os que são incapazes de enxergar o sol; os que tapam os olhos, incomodados, e evitam o sol; e os que cegam de tanto admirar o sol. O sol, porém, aquece todos eles. O amor é como o sol - e o que nos faz enxergá-lo é justamente se capaz de ter a sensibilidade para poder sentir a febre do seu calor.


- Você deve ficar com ele. - eu disse, de uma forma sem adornos.

Cruzei os braços de um jeito grosseiro bem perto do peito, como se precisasse segurar e esconder todo o amor que sentia por você. Cocei o nariz, tapando um pouco a boca em um gesto inútil de impedir que aquelas palavras saíssem da minha boca. Porém, não desviei o olhar - eu precisava ver se você acreditaria na minha mentira. Karen, eu te disse essa inverdade no dia 16 de agosto de 2012, em uma quinta-feira cinza e triste. E depois de catar fiapos imaginários em seu vestido verde, você assentiu com a cabeça, aplaudindo silenciosamente o seu próprio esforço em colaborar com a minha falta de sinceridade. Você sabia que eu mentia, claro. E eu consegui ver o seu esforço em ser conivente com a minha própria fraude. Você não disse nada e, hoje, eu te agradeço por isso. Eu sei que algumas palavras enxeram seus pensamentos, mas não disse nada, fiquei calado. E aquele sussurro rouco, no pé do seu ouvido, que te dizia para não deixar escapar palavras de amor, com certeza não foi a sua consciência te inibindo; foi o seu próprio medo te paralisando. Você fingiu não ouvir a franqueza que teimei em dizer mentindo, e eu escutei uma coisa que, na verdade, você não falou. Dois covardes - você, cúmplice; e eu, omisso. Karen, nós piscamos nossos olhos de uma maneira demorada, medrosa e artificial. Um gesto premeditado e voluntário, uma necessidade covarde de nos cegar por alguns instantes para não nos darmos ao luxo de enxergar todo aquele amor que desfilava bem ali, na nossa frente. 


Unfaithfully yours,
Hank.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

O amor pelo terror.




Coloquei o marcador entre as páginas 213 e 214, olhei o relógio - eram 18:15 - e respirei todo o mormaço daquele fim de tarde.

O ônibus se arrastava devagar pelo congestionado trafego. O canto dos pássaros era abafado por buzinas e palavrões. O calor do verão desmentia todos os comercias de desodorantes, e as rodelas de suor nas axilas apodreciam camisas novas e mal passadas. Mulheres assopravam seus decotes fartos, enquanto homens enxugavam a umidade em suas testas com as costas das mãos. Trabalhadores honestos, apressados e católicos, amaldiçoavam suas vidas num sussurro baixinho, como numa prece maldita. As pernas tremiam, os olhos injetados de cansaço. O corpo implorando sossego. Um inferno. Pelas janelas do lado direito o pôr-do-sol murchava, deitava cansado em um sono preguiçoso e assustado - um pedaço do paraíso naquele inferno.

- Outro acidente, porra! - disse o motorista para ninguém em especial. - É o terceiro que vejo essa semana.

Todos cansados, mas mesmo assim a maioria delas esticaram o pescoço para ver aquela desgraça. Alguns até se levantaram, aplaudindo de pé a catástrofe. Outros gastavam o resto de suas energias cochichando sobre o desastre de um jeito imbecil e estúpido.

Continuei atento no degradê do céu. Do azul claro abraçando o laranjado aos poucos. Ainda conseguia ver o vermelho ocre raso no horizonte. Em um ônibus tumultuado eu me senti completamente sozinho, apenas eu olhava por essa janela.

Por quê insistem em olhar essa tragédia? Eles não sabem o que estão perdendo...

Só depende deles, pensei.

A verdade é que eles gostavam de ver aquilo - o terror. Os cadáveres. O sangue. O carro batido. As marcas de pneus desenhadas no chão. Eles adoram! É o que vende: a tragédia é a capa do jornal; o noticiário; os filmes de ação; as conversas de bares; os rádios; os livros de história; a bíblia.

Só depende deles, pensei de novo.

Mas o ser humano ama as tragédias, desgraças, violências, calamidades, desastres, dramas e fatalidades.

Como num filme.

O filme começa. Nos primeiros segundos, a felicidade. No primeiro minuto a dificuldade. A separação. As brigas. A doença. O medo. A revolta. O choro. O revés. A tristeza. O rancor. O terror. E nos últimos segundos, em letras de forma brancas, escrito a frase: "E viveram felizes para sempre."

Moral da história: o final feliz fica por conta de vocês.

Só depende deles olhar para a outra janela.

Olhei o relógio de novo - 18:25 -, puxei a corda e um som de cigarra gritou alto dentro do ônibus. Eu precisava sair daquela plateia de filme de horror.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Forgive me, Father. VI



- Padre, não consigo perdoar meu marido.

- A escola das boas intenções habita dentro de você, filha.

- Aponte um caminho, por favor.

O padre, olhando no fundo dos olhos castanhos da moça, tragou forte o cigarro e deixou a fumaça sair devagar pelo nariz. E disse:

- Só podemos aprender a perdoar, perdoando.

- Mas sinto que vou morrer. Eu acho que não consigo.

- É bom sinal. Você está a um passo de onde quer chegar.

A moça procurou fiapos imaginários em sua blusa, parecendo não concordar com nada.

- Muita gente - disse o padre - só aprende a nadar se afogando.

Ela entendeu.

Sobre a vaidade.

E se não fosse pelo cheiro ruim que o cigarro deixa no meu corpo, eu fumaria o tempo inteiro. Se não fosse pela mãe dos pecados capitais - a vaidade -, eu já estaria morto há muito tempo.