sexta-feira, 26 de junho de 2015

Forgive me, Father. VIII




- Perdão, padre. Eu pequei.

A voz deslizava da boca de um jovem adolescente. Devia ter uns 18 ou 19 anos. Loiro, de avô negro. Gordo, porém o pai e mãe eram magros. Ele disse da forma mais triste que pôde reunir, e com a sinceridade mais sólida entre as certezas inquebráveis desse mundo inconstante.

- Não é pecado ser gordo - disse o padre em um tom de sarcasmo.

O garoto franziu o senho, foi uma mistura de terror e surpresa.

A piada não caiu bem, pensou o padre.

- A não ser pela gula - enfatizou o padre, tentando animar o rapaz gorducho de cabeleiro cor-de-trigo.

O rapaz chorou um choro terrível.

O padre sentiu vergonha, enrolou o cabelo e catou fiapos invisíveis pela batina. Depois pediu, dessa vez em um tom sério, para que o rapaz continuasse a confissão.

- Desculpe, filho. - baforou o cigarro e deixou que morresse no chão frio do solo -. Continue, por favor.

- Padre, menti para o meu melhor amigo. Quero seu perdão.

Pela primeira vez, em muita confissões, o padre se emocionou. Não acreditava que aquele tipo de pureza genuína ainda existisse nesse inferno que é a terra.

- Filho, vá para casa e agradeça a Deus - qualquer deus, pensou o padre -. Agradeça por ter esse coração bom que você tem. Não se desculpe, por favor.

E o padre chorou pela primeira vez em anos. Foi um choro de esperança e pena.

Nesse dia, o padre rezou o terço com o joelho sobre o milho.




sábado, 6 de junho de 2015

Querida Karen, XVI





Sábado, 6 de junho de 2015.
são 23:23 e estou sóbrio.

Querida Karen,

Já faz algum tempo que não te escrevo. Não vou me desculpar por isso, são cartas que eu não mando - e que você não se importa em receber. Mas essa semana foi sobre você. Em sonhos, nas calçadas, nos perfumes e nas miragens que meus olhos entreabertos inventam, no instante sonolento em que um beijo acontece com um outro alguém. Lá está você: um doce assombro com o olhar amadeirado, apodrecido com a chuva das lágrimas que te fiz chorar. Meu amigo se casou, e elá estava você, sorrindo, decidida e com um orgulho infantil de ter pegado o buquê da noiva. E até uma banda - 4 Non Blondes - desconhecida, tocando alto no fone de ouvido da mulher ao meu lado no metrô, me fez lembrar você. É o mês de junho, só pode. Karen, já não sinto tanta falta dos seus beijos e sexo, o que me faz querer voltar no tempo é eu poder falar e você realmente me escutar. As pessoas não fazem isso hoje em dia, elas só esperam a sua vez de falar, elas não dão a mínima. Sinto falta de saber que você estaria no segundo ônibus em direção a minha casa com um riso nos lábios, e com a certeza que eu faria o mesmo para ir a sua, no dia seguinte. Sinto falta dos finais de semana que sempre perdíamos a melhor parte do filme, porque a gente sabia que não tínhamos tanto tempo assim a perder. Sempre uma conversa urgente, uma ideia sendo formada. Sinto falta da sua amizade feminina, Karen. 

Unfaithfully yours,
Hank.

domingo, 31 de maio de 2015

i stay


Eu fico porque adoro o seu desmazelo com os próprios cabelos, eles refletem o jeito que você negligência a própria vida: uma bagunça, um caos, uma piada. Nunca usa maquiagens ou batons. O desleixo com aparência não fala, mas diz muito sobre você. E essa preguiça boa em fazer questão em não delinear a exterioridade desse corpo mortal e magrela, é o que me fez apaixonar por você. E quando eu acordo, de ressaca, em um quarto de hotel barato, e te vejo ao meu lado, eu agradeço a qualquer deus por sua beleza e adornos não saírem com água e sabão no primeiro lavar de rosto. É o seu cheiro, o seu hálito, o seu boquete, seu amor pelos animais, seu medo de sapos - e de príncipes também -, seu deslize por um cigarro de maconha, o formato da sua boca ao tentar engolir um riso, seu jeito com crianças, a forma como você fala sobre seu pai, o modo como você atende o telefone, seu hábito de dormir no mesmo canto da cama que eu gosto, a maneira como olha pro espelho sempre insatisfeita e disposta a não mudar nada em si mesma, o dom em falar com velhinhos, o talento na cama, a predisposição em nunca arrumar seu quarto, sua pressa de chegar e a preguiça de ir embora; é por isso que eu fico, não existe maquiagem para isso, nada sintetiza. E por isso, de novo, eu fico.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Efélides






[... O romance entre Romeu e Julieta durou apenas quatro dias, deixando seis mortos. Dante Alighieri conheceu sua amada, Beatriz Portinari, aos nove anos e a amou por sua vida inteira - a única tragédia foi que ele nem sequer a beijou nos lábios ...]

Seu nome é Marla.

Marla sentou ao meu lado, perto da piscina, e disse qualquer coisa que não prestei atenção. O olhar atento, como quem enxerga os sentidos e sente a rotação da terra. Ela não tinha aquela preocupação ou medo de espiar por cima do meu ombro, por curiosidade ou distração. Marla me olhava como se pudesse ver o seu próprio reflexo no fundo do círculo da minha íris - e eu me encantei por isso. Mãos pequenas, sem esmalte ou brincos, corpo magrela e uma incontestável marca de riso no rosto. Ela sentou um pouco mais perto e eu vi seu rosto pintado com sardas, de uma cor que faria Botticelli aplaudir. Seu hálito morno me dizia que já me viu por aí em algum lugar, mas o ruivo desbotado do seu cabelo me chamou mais atenção. E quando Marla bagunçou seu cabelo de ferrugem com a mão esquerda, depois olhou debaixo para cima e, logo em seguida, deu um riso sem motivo algum, eu só consegui pensar duas coisas: a primeira é que eu passaria o resto da noite fazendo chover minha saliva no céu da sua boca; e segunda é que eu não tinha tanta certeza que isso aconteceria. E não aconteceu. Marla levantou e foi embora, levando com aquele rebolado engraçado todos os planos que eu tinha com ela pelo resto da noite - ou da vida.


Alguns dias depois, Marla estava na minha cama tomando um drinque que ela mesma preparou - um trago de vodca, gelo e suco. Pura estática, energia, eletricidade. Falava sem parar, deixando escapar segredos. Carregava nas palavras a marca d'água da promiscuidade. A boca de Marla abrindo e se fechando, o rosto tampado por uma cortina branca com sardas, perfurada por dois olhos castanhos cheios de vida. O sorriso largo e gordo, umedecendo os próprios lábios ressecados. Os olhos já sentindo a embriagues no sangue. O suor mergulhando num deslize pra dentro de seu decote tímido. Uma música - não lembrou qual - injetou coragem e medi a distância entre nós, o suficiente pra saber qual seria o tamanho da mola propulsora que usaria para chegar até sua boca. Roubei um beijo de Marla, e ela assentiu silenciosamente, movendo a cabeça para cima e para baixo, de leve, afirmando uma resposta que eu nem sequer perguntei. Pura eletricidade, acertei. Beijar Marla era como lamber uma pilha.

[...]

A máscara de garota má escorregou em suas costas, e ancorou por lá. Marla é meiga, dengosa. Incrivelmente maluca e está sempre sorrindo, dizendo sim para todas as coisas. E quando o sinaleiro fica vermelho, Marla me beija e descansa todo o peso da coragem em ser quem ela é, no meu ombro.
Ainda não sei se foi o calor do nosso sexo que derreteu essa sua vontade de ir embora, ou se foi a flor de origami que te dei que converteu tudo em uma vontade boa de ficar - não me importa muito. Mas parece que Marla está mais leve. A armadura que usava para assustar, acabou sendo um escudo desapropriado pra quem não batalha mais contra si mesma. Eu venho em paz, e minha bandeira é o lençol cor-de-neve que você sujou de sangue na nossa primeira noite de amor.

Perto de nós, Romeu e Julieta viveram apenas um lance, e, Dante e Beatriz, tiveram apenas um flerte.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Ode ao cubo, o triplo, a trinca







Summer é morena, cabelos cor-da-noite e curtos, olhos cinza-chumbo enegrecido. Gosta de ler Bukowski e parece conhecer a timidez apenas quando é preciso olhar no fundo dos meus olhos; talvez porque ela já saiba do feitiço que carrega no olhar. No cantinho esquerdo do rosto, perto da boca, uma pinta sui generis adorna a trave do seu beijo. O riso dela é largado e frouxo - deveria tocar no rádio. Ela adora usar brincos woodstrockianos e tem uma mania ímpar de tapar o rosto enquanto eu deslizo e brinco por entre suas virilhas. Sempre usando algum maldito batom que vou borrar com a mão, ou com minha boca. A esclera do olho é branco como a neve, uma palidez albina para combinar com seus dentes grandes e com sua áurea de paz que carrega em cada vestido florido que gosta de usar. No sorriso é verão, no coração é inverno. Summer é mais poesia que mulher.

Marissa é branca, cabelos cor-de-trigo e longos, olhos verde-mar. Ela é riso fácil, uma tarde de domingo com chuva. Sua música predileta é a que toca agora no rádio, e sua agenda é sempre maior que os compromissos ali escritos. O beijo é sem pressa, o sexo não. Odeia brincos e gosta de me encarar durante qualquer coisa; seja conversa, sexo ou tédio - e isso me desnuda, acaba despindo todas as roupas sujas da minh'alma. Cama limpa no quarto ou barraca suja no quintal, ela simplesmente não se importa - é incrível. Marissa é mergulho em cachoeira na semana, é trança no cabelo pra tocar violão. Ama os animais apesar de não ter nenhum, ama a cor do céu sem nunca ter alcançado o paraíso, ama também livros que nunca leu e filmes que nunca assistiu. Seu vestido é na pele, e por isso Marissa é mais flor que mulher.

Marissa é saúde, Summer é fumaça; Summer é ressaca, Marissa é a água que cura; Marissa é sono, Summer nunca boceja; Summer é roxo, Marissa é arco-íris; Marissa dia, Summer é noite; Summer é fria como banho de piscina, Marissa é morna em banho-maria. Marissa é sol, Summer é lua.

A não ser pela queda por um cigarrinho de maconha, a única coisa que elas tem em comum, sou eu.

Ménage à trois ...

Começamos tímidos. Eu não tinha a noção em como começar um suruba, um bacanal - e por fim, acabamos fazendo amor, nós três -, eu só sabia que ia acontecer. O sonho de todo homem, mas eu jamais pagaria por isso. Jamais! Os três ali sabiam o que ia acontecer, e talvez por isso quase não nos olhamos por um bom tempo. Um beijo aqui, um riso ali, e a coisa foi acontecendo. De repente as duas nuas ajoelhas na minha frente, disputando entre si quem me chuparia mais.

[...]

Senti que meu sonho tinha se realizado quando vi Marissa e Summer, ali, ajoelhadas de quatro, se debruçando sobre o sofá. O contraste de cor, de personalidade, suas bundas, seus seios, cabelos, bocas. Foi como acreditar em Deus pela primeira vez. Elas olhando para mim, me desejando, enquanto eu as admirava em pé, escolhendo com qual delas eu começaria a foder - difícil escolha, pensei.

[...]

Estava quase gozando, sentia que ia explodir. Summer e Marissa ajoelhadas em minha frente, os rostos colados, pupilas dilatadas, nuas e sorrindo. Eu disse alguma coisa, algo como nunca esqueceria esse momento e Gozei, e gozei, e gozei, e gozei em suas caras, bocas, peitos, olhares e cabelos. Jamais gozei igual. Foi o ápice do gozo. Regozijei e minha voz falhou, minha perna tremeu e enfraqueceu. Foi como se um anjo lambesse o meu ânus. Ceguei por alguns segundos, depois uivei.

[...]

Summer fumava, ainda nua, na varanda do hotel.

- É, mas ela se trancou no quarto e não quer sair. Acho que foi dormir - disse Summer sobre Marissa.

- Summer, o sol se pôs. E agora eu vou aproveitar a lua. - eu disse.

E fiz amor mais duas vezes com Summer antes de dormir.

Nesse noite eu não sonhei.

E nem queria.

Realizei.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Caneta esferográfica azul


foto: ponta de uma caneta esferográfica azul.




Você assinou seu nome do jeito que eu sempre amei: A primeira letra num impulso involuntário, o restante redondo, concentrada, sem tirar o punho da folha, voltando apenas para cortar a letra T e pingar o I. E assim você assinalou todas as quatorze folhas - frente e verso - do nosso divórcio, com aquela caneta esferográfica azul.

[15 anos atrás.]

O pub estava cheio, como de praxe. Eu estava escrevendo um romance acompanhado de meus melhores amigos - um maço de cigarro e qualquer cerveja que meu pouco dinheiro podia comprar. Foi exatamente nesse momento que você entrou por aquela porta sem adornos. E foi nesse mesmo instante que eu deixei de escrever o meu romance para tentar viver um.

- O que está escrevendo? - você perguntou.

- Nada refinado ou complexo. Provavelmente está uma merda. Está tão pacato e simples. - eu disse.

- Sempre acreditei que a simplicidade fosse o último grau da sofisticação.

Me calei, sem graça. Passeei o olhar por entre minhas folhas jogadas, desorganizadas pela mesa.

- Mas e essa bagunça?

- Para combinar com o meu cabelo e minha vida.

Agora foi você quem se calou. Mas apenas por alguns segundos.

- Do que se trata? Aposto que é uma história de amor. - você insistiu.

- Claro! É sobre uma moça que faz perguntas demais para um escritor fracassado em um bar de quinta categoria e eles acabam ...

- Se casando? Se apaixonando?

- Transando.

- Engraçadinho..

Eu não sabia o que dizer. Você tinha esse poder de inventar uma nova estação do ano. De me deixar sem graça e me fazer sorrir ao mesmo tempo. Tinha esse jeito de passar a mão no cabelo para bagunçar ainda mais o seu penteado largado.

- Não quero te atrapalhar, moço. Mas agora você já tem uma boa história para contar.

- Espere. Anote aqui seu número. Aposto que vai ser a tinta mais bem gasta dessa noite.

E então você pegou a caneta, escreveu seu número em uma das folhas, me olhou e sorriu.

- Você sabia que a bolinha na ponta dessa caneta é de carbureto de tungstênio, um metal usado em balas de revólver?

- Vou tentar não matar você de tédio enquanto estiver lendo meus textos.

E sorrimos.

[Agora, de volta ao divórcio.]

- Lembra da bolinha na ponta da caneta?

- Sim! - você disse com raiva.

- Acabei te matando, certo?

- Não.

- Mas você está nos matando agora.

- Não! Eu não posso me matar, pois eu me suicidei no dia em que te conheci, porra!