quinta-feira, 22 de agosto de 2013

1975



É novembro de 1975 e a gasolina é barata. No rádio toca o novo álbum do Pink Floyd - Wish You Where Here - e, no mês de abril desse mesmo ano em alguma garagem dos Estados Unidos, nasceu a Microsoft. Foda-se! Estou em um ônibus de número 157 e no letreiro está escrito "Belo Horizonte" em letras grandes, brancas e gordas. Durante a longa viagem, anarquistas exibidos e trabalhadores exaustos ainda discutiam sobre o fim da guerra do Vietnã. Lá no fundo do ônibus, madames e idosas senhoras comemoravam discretamente e discutiam em um tom abafado o por que de 1975 ter sido eleito o Ano da Mulher pela ONU, e crianças imitavam seus pais da maneira mais masculina que pudiam reunir, porém em um tom zombeteiro e divertido. Está abafado. Lá fora a umidade consegue surrar o vidro dianteiro com força, formando pequenas gotas d'água e obrigando o motorista a ligar o limpador de parabrisa de vez em quando. O dia adormece amargo e lento pela minha janela sem fendas. Em uma época de chuva, o sol se pôs pragmático e oco, como um funcionário que bate o ponto mais pelo prazer da saída do que pela benção de se despedir de mais um bom dia de trabalho. Em 26 de novembro de 1975 o sol não morreu sendo o protagonista de uma peça teatral, ele apenas desmaiou desajeitadamente sendo um coadjuvante desassistido e envergonhado, um figurante cinematográfico despedido por falta de talento. A bochecha do céu corou num triste tom de vermelho ocre, e foi assim que eu soube que o dia não nasceria de novo para nenhum de nós alí naquele maldito ônibus 157, com letras brancas colorindo de sem vida o nosso destino ceifado pela morte certeira. A noite chegou fazendo um doce cafuné e a maioria das mulheres e crianças agora dormiam. O ônibus se transformou em um grande berço balançado por mãos que apagam a luz quarto e da nossa alma assim que adormecemos. - e espero que ao sair do quarto, gire a maçaneta com força e devagar, ao mesmo tempo, para não fazer muito barulho. A chuva de Novembro pousava num ritmo acústico e macio no teto frágil do ônibus, e eu senti a magia tomar conta dos homens, que agora estavam calados. Eles olhavam através do vidro embaçado pelo clima frio e se sentiam estranhamente confortáveis. Olhavam também para os desenhos que algumas crianças fizeram na delicada vitrine, no qual a morte resolveu comprar todos de uma vez só. A chuva caia mais depressa e pesada agora, e eu tive uma impressão, aliás foi quase uma certeza, de que os homens estavam tentando reunir alguns votos e promessas de fim de ano que não cumpririam jamais e não se sentiriam mal por isso, assim como eu também não. E esse foi o último pensamento que tive antes de adormecer e não acordar mais.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Querida Karen, VIII


 14 de Agosto de 2013.
Querida Karen,

A raiz do seu cabelo tem um tom castanho-amadeirado, um pouco escuro, que vai deslizando pra um forte fim de tarde ensolarado até chegar na metade. Percorrendo o restante de cada fio, eles mergulham numa cor chá-de-erva-doce e permanecem assim, clareando cada vez mais até chegar nas pontas. O tom degradê do seu cabelo é uma flor margarida dentro de um universo de dourado, e eu me sinto o menor dos planetas, tentando achar uma brecha para girar na órbita do seu penteado com uma franja, Karen, a mesma franja que você própria corta em segredo no banheiro, em frente ao espelho, depois de conferir duas vezes se a porta está de fato bem trancada. Karen, me despeço do seu cabelo sabendo que ainda lembrarei daquela sua blusa regata com um desenho engraçado e meio desbotada, da sua calça do Chaves com marcas de cabides e do cheirinho bom da sua cama, que já contribuiu tanto para a minha felicidade e prazer. Escrevo meu adeus diferente dos vilões de historinhas em quadrinhos, que dizem seus terríveis planos infalíveis antes mesmo de colocá-los em prática, antes mesmo até de começá-los. Karen, não estou escrevendo uma possibilidade, estou escrevendo um fato. Adeus.

Quanto às pelúcias, elas ainda decoram minha cama. As fotos ainda dão o ar da graça nos quadros, e as cartas ainda estão acumulando poeira dentro da caixinha de sapato rosa que mora no alto do meu guarda-roupas. Nossas músicas estão nos rádios e o nosso sexo existe apenas em lembranças, desde o seu aniversário e você sabe, Karen.

Quanto ao tempo, Karen, eu digo que meu coração era um cimento fresco, onde você colocou seu pé e sua alma por querer, enquanto corria por aí vivendo sua vida. Bem, ele se consolidou e pode passar anos e décadas, e ele ainda continuará moldado à você pela a eternidade.

Karen, quanto ao amor, eu digo que ele tem a mesma força de vontade da sua franja. Por mais que eu tente cortá-lo, em segredo, no banheiro de bares ou motéis, ele volta a crescer, estuprando minha visão e me forçando a enxergar somente seu lindo cabelo loiro.
  
Com amor, 
seu gatinho, seu ridículo, seu bem.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

bon vivant




O homem desenhava os três últimos números de seu telefone num guardanapo. Ele parou por alguns segundos e massageou seu bigode malandreado, fingindo não saber seu próprio telefone de cor, pintando de desleixo e desmazelo seu truque teatral que sempre dava certo. Ele sabia que todos o obervavam. Ele olhou em volta com seus óculos escuros pesados e sentiu que era anônimo, e sorriu tentando contar imaginariamente quantas vezes teria feito a mesma cena em bares diferentes. O homem virou para a platéia e seu cotovelo fincou no balcão do bar, era o alicerce que suportava seu enorme corpo. Seu ombro relaxava desigual e o cigarro, aceso entre os dedos, sublinavam a ideia de rebeldia, charme e elegância. A sola do seu sapato fazia uma marca de sujo no balcão, ele estava fazendo pose - e todos admiravam isso. Ele vestia um terno preto listrado na vertical e uma camisa social impecavelmente branca por dentro. A gravata borboleta preta e o lenço vermelho, que jamais seria usado, enfeitavam o vestuário do enorme rapaz. Ele tragou o máximo que pode e fingiu sentir a lembrança arrombando sua cabeça. Ele pigarreou forte, sorriu e deixou que o lápis de olho da garçonete escorregasse no papel mole e branco, pintando os três últimos números de seu telefone. Com o papel, o homem fez um origami de flor e margulhou no decote da moça ao seu lado. Depois de beijar a mão da moça numa prece gentil, bebeu o resto de sua cerveja sabendo que todos ali no bar ainda o olhava com pupilas dilatadas e sombrancelhas desacreditadas. Ele garantiu mais uma boceta no cardápio, mais um abraço quente em noites frias. Ele era aplaudido silenciosamente por todos, inclusive pela moça - e ele sabia disso.

domingo, 11 de agosto de 2013

Talvez o amor seja isso; V



- Papai, você morreria por mim?

- Não.

- Papai, então você mataria por mim?

- Claro que não, filhinha.

A filha já estava bastante desapontada com seu pai. Ele não parecia aquele herói de filmes natalinos. E tentou num profundo ato de desespero descobrir até onde seu pai iria por ela, seu dengo. Ela queria um gesto que comprovasse o amor de seu pai por ela.

- Droga, papai. E o que você faria por mim?

- A primeira vez que eu te vi, filha, foi como se meu coração batesse fora do meu peito. Eu não preciso matar ou morrer, eu dedico cada segundo da minha vida a você. Eu vivo por você, filhinha.

A filha sorriu contente e satisfeita.

Talvez o amor seja isso; a certeza que a verdade de pai é imã para um sorriso sincero de filha.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Querida Karen, VII



05 de Agosto de 2013.
Querida Karen,

Descobri em fotos e em memórias que você tem várias risos. Então comecei a numerar e separá-los por ocasião;

Seu quinto sorriso é um riso amargo, como alguém que tenta fazer cócegas em si mesmo. Geralmente você entrega ele de bandeja em bares, dispensando rapazes por falta de paciência em explicar o por quê de você não querer dançar aquela música sertaneja universitária com um estranho bêbado.

Seu quarto sorriso é um riso de lembrança. Ele te clareia quando você encosta a cabeça no travesseiro ou enquanto olha os carros pela janela do ônibus. Karen, esse riso vem sempre acompanhado de um suave inclinação de cabeça, para cima e para baixo, e essa é você aplaudindo silenciosamente seus bons momentos.

Seu terceiro sorriso é um riso musical. Karen, esse riso te abraça quando você está lavando aquela montanha de louça e de repente a agulha do som para em uma música do Cazuza. E então você disfarça a esponja em forma de microfone e cantarola durante o seus deveres domésticos. Esse riso te carrega no colo no chuveiro quando você tem uma tarde sossegada e feliz ao lado de quem você gosta.  

Seu segundo sorriso é um riso familiar. Seja nas raras vezes que sua mãe te dar razão, seja quando você vê o seu pai soltando uma gargalhada sóbria. Esse riso, ele é quase um obrigado aos céus por fazer chover bençãos no farol que te ilumina, te protege e te guia.

E, querida Karen, seu primeiro sorriso é aquele riso ímpar que só maquiava seu rosto quando eu estava por perto e te beijava na boca, enfiando a língua no seu nariz feio.
Unfaithfully yours,
Rodrigo.