quinta-feira, 27 de junho de 2013

Talvez o amor seja isso; IV




Os dedos, das mãos e dos pés, já começavam a ficar engelhado. O banho demorado é uma prece característica dela antes de ir encontrar com seu noivo, um ritual que benzia sua áurea e coloria sua fé e calma de azul.

Da cozinha, a chaleira ao fogo gritava sua prontidão e sussurrava o atraso da moça. Depois de tantos anos o nervosismo do primeiro encontro ainda se escondia no titubear de suas pernas. Assim seu chá se tornou seu calmante natural, seu suco de maracujá que ferve sua paz e refresca sua ansiedade. O cheiro irresistível de camomila deitava no colo do ar e ia desfazendo-se por entre os cômodos do apartamento apertado até se jogar pela janela do décimo-segundo andar, deslizando pra liberdade da rua. A moça, correndo, bebericou o chá, calçou sua bota, apanhou seu sobretudo marrom, passou seu melhor perfume e se foi pelo elevador para encontrar a liberdade que a prende. A moça escorreu rápida tentando acompanhar, com a mesma vontade, a fumaça de seu chá de camomila.

Seu noivo era pontual e cego. Seu cabelo liso estava bem penteado para o lado esquerdo. Tinha a barba bem feita, seu rosto tinha um liso de uma cerâmica. Seu cão-guia descansava dentro do restaurante enquanto recebia algum carinho do seu amigo. Incrível como esses animais nascem com uma paciência que meditamos a vida inteira para poder aprender. Seu óculos-escuro não refletia a pessoa que o olhava, mas também não deixava ver seus olhos mortos. Ele tinha a precisão e moderação igual ao nó de sua gravata rosa.

- Oi, meu bem. - disse a moça. Ela o cumprimentou firme com uma das mãos e o beijou de leve nos lábios. - Como vai?

O cego devolveu o beijo. Ele esperou um pouco para responder. A cegueira aguça todos os outros sentidos. Ele enxugou as informações, pensou um pouco e se esforçou para não gargalhar. O que saiu de sua boca não foi um gemido espremido, foi quase um riso. Aos poucos soltou as mãos da moça e disse:

- Você está linda.

- Como você sabe? - brincou a moça sentando na cadeira e puxando o menu para perto do rosto, escondendo o sarcasmo. - Você é cego.

Ele sorriu. Em seguida disse:

- Senti seus dedos levemente enrugados, o que só me diz que você fez o seu ritual demorado e secreto de descarrego pessoal no banho, por isso a textura dos seus dedos. Você se temperou espiritualmente só para que eu pudesse sentir melhor o seu sabor. Sua boca ainda tem um magro gosto de camomila, e isso manifesta que, depois de todo esse tempo, você ainda sente as borboletas no seu estômago quando vai se encontrar comigo. Ainda sente o nervosismo e isso é incrivelmente bobo e meigo. Não escutei o bagulho alto do seu salto preferido batendo no chão, vindo em minha direção, e isso revela que provavelmente se atrasou e não teve a paciência pra colocá-lo. Você queria muito chegar logo, eu sei disso. A demora no banho, o chá e a pressa de chegar aqui. Isso que contorna sua beleza. É o rímel que dilata meu amor por você.

O rapaz cego afagou seu cachorro mais uma vez e sorriu de lado, depois jogou essas palavras na direção da moça:

- Nós, os cegos, nascemos com a benção de não cair nas armadilhas dos olhos. Eles enganam. Nós percebemos o que realmente importa. Não existe maquiagem pra voz, para as rugas dos dedos e é exatamente nesse tipo de coisa que nós reparamos. Não é seu decote ou o brilho do seu cabelo que importa. É o cheiro do seu corpo, é o gosto de camomila do seu beijo. Eu sou cego mas enxergo coisas que ninguém mais vê.

A moça o amou ainda mais.

Talvez o amor seja isso; amar no outro o que o espelho não reflete. É desenhar em braile todo dia no seu coração a certeza da frase de que "o amor é cego".

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Triste aniversário



Banhei o cotonete no suco de limão e escrevi num folha de pergaminho, pequena e branca, lavando em formatos de letras meu revolucionário pedido de namoro. Eu só precisava de você, da minha coragem, do meu esqueiro e do nosso lugar favorito; o nosso gramadinho.

O limão secou no papel. O pergaminho estava completamente branco. E então, numa sexta-feira 13, eu acendi o esqueiro, o coloquei em uma distância segura da folha e deixei que o papel recebesse um pouco do seu calor. Não demorou muito para que a labareda queimasse o ácido do limão e, como num passe de mágica, deixasse florescer aquele inesquecível e gritante pedido de namoro em sua superfície amassada com dobras delicadas; sinal que foi guardada com todo carinho no bolso e trás do meu jeans maneiro. Eu finalmente estava pronto para trocar a adrenalina da montanha-russa pelo sossego de uma rede, que balança bem devagarzinho até parar por completo.

Triste aniversário! Para celebrar, existe um bolo solitário com velas que já não comemoram, e sim choram com o pesar de estar contando apenas, de um em um, e somando quantos anos está completando que estou sem seus beijos. Sem chapéu de festa e com bastante guardanapos para enxugar lágrimas de um soluço triste. Sem doces pois essa data é amarga! E lá vou eu, de novo, assoprar as velas, pedindo forças para cumprir minha promessa de não te amar mais. Porém isso é a mesma coisa da minha dieta que começa euforicamente numa segunda-feira de manhã e acaba em uma quarta-feira a noite, na churrascaria comemorando a pontuação altíssima de um amigo, na prova de algum concurso público. Eu voltaria com mais fome.

Esse amor, que já foi uma chuva de sono repentino num dia de calor, que me influenciava a pegar o mais quentinho dos edredons, me jogar no sofá, me agasalhar e deixar a televisão ligada no canal de algum desenho animado para adormecer, dando vários suspiros de satisfação em agradecimento aos céus. Hoje esse amor é droga de um pingo de torneira que cai na pia, e que cada gota se transforma em unha arranhando um quadro-negro num dia de silêncio e me traz o desconforto de uma vida inteira pelo fato de não conseguir descansar um pouco na madrugada de todos os dias.

domingo, 9 de junho de 2013

despertaDOR



Vai despertar, com a impressão de estar levando um soco na boca do estômago, e vai sentir uma dor que nunca sentiu, vai saber a dor de perder alguém que ama, sem saber que era amor, sabendo apenas que perdeu, definitivamente. Vai sentar com aquele velho retrato na mão, lembrando do cheiro que naturalmente existia por entre vocês. Mas tudo que vai possuir são lembranças, e a certeza de que tudo não deu certo por sua causa, porque você não se deixou levar pelo sentimento que sabia sentir, por medo, do que nem mesmo você sabe ao certo. Vai doer em você, da forma como doeu nela, e nada mais poderá ser feito, porque ela não vive de passado, e você agora não passa disso.

Por:  Soares, Tiessa.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Querida, V



07 de Junho de 2013.
Querida,

Eu continuo olhando para esse amor despedaçado, para os cacos dessa paixão e tudo o que eu consigo enxergar é o copo ainda limpo, reluzente, reconstituído e cheio. Ainda ouço o tinindo de quando os copos se abraçavam, comemorando um vitória de corrida ou um brinde de amigos bêbados. Essa louça, de vidro maciço, não foi quebrada por superstição de casa nova, e sim por mãos trêmulas e descuidadas. Eu me concentrava na sua transparência e via tudo de ponta cabeça, seu cristal era translúcido e hipnótico. Era como se você filtrasse a minha loucura e depois normalizasse o meu exagero. Era uma das suas formas de paz, um dos 'porquês' que eu ainda te amo. Eu te enchia de pornografia e você 'fotossínteseava' minha putaria, transformando tudo em amor. Eu te enchia de vodca e você suavizava meu drinque, substituindo tudo por água potável para me poupar da ressaca. Sim, querida, existem outros copos, outras taças, outras louças e eu continuo bebericando meu vinho favorito em quartas-feiras a noite, antes de desenvolver softwares para computadores ou antes de escrever algum texto no meu blog, escutando um pouco de Cássia Eller, Skank ou S.O.J.A. Mas o sabor é diferente. Meu paladar empoeira e varre esse hóspede hostil pra bem longe ao beijar outra taça. Meu palato reúne nuvens negras e carregadas ao ser inundado por essa textura cosmética e inóspita. O vinho é o mesmo, mas o gosto é desfigurado, é sujo! Até parece que o sabor estava no copo, não no vinho. Até parece que o meu amor estava em você, não em mim.