terça-feira, 19 de junho de 2018

Querida Karen, XVIII





14 de março de 2018.
são 22:04 e estou com muita saudade.

Querida Karen,

Os gritos eram grandes demais para sair pela minha boca. As lágrimas não existiam, não desceram. O mar agitado não conseguiu atravessar o vidro dos meus olhos naquele momento. 

Arrisquei um abraço, um socorro, e alguém me impediu, não lembro quem. Talvez foi o meu próprio espanto, ou o calafrio da minha espinha que me fez paralisar, mas isso não importa agora. Karen, a moça estava de costas para mim, e em outros tempos seria a ocasião perfeita para um susto. Seria engraçado. A moça iria me xingar e depois sorrir, parafraseando o diálogo de um filme de sotaque nordestino, como sempre o fazia, ou então me abraçaria, ainda praguejando, dizendo que se eu fizesse aquilo novamente me mataria. O cachorro latia forte, amarrado por uma corrente curta, apenas o espaço bastante para beber sua água e comer sua comida. Minha mão direita segurou meu braço esquerdo involuntariamente num pedido desesperador de amparo. Minhas companhias eram a culpa, o espanto mudo, os calafrios, a culpa, o medo, o desespero, a raiva, a melancolia, a aflição, a angústia, a infelicidade, a dor, e, de novo, a culpa. A mão arriscou um belisco. Fracasso total, pois não consegui acordar desse pesadelo.

Era real!

O que eu vi foi:

Os pés da moça vacilantes, abobalhados, meio tortos, quase que suspensos. A calça jeans surrada cobria as pernas finas da moça. Em um dos bolsos de trás havia um celular colocado as pressas, sem cuidado, desajeitado. Os braços abandonados pelas reações, pacientes adormeciam bem quietinhos, rejeitados pela existência da vitalidade. O único movimento, naquele ambiente paralítico, vinha do lindo cabelo da moça, que, vez ou outra, eram socados de forma suave pelo vento fraco que soprava ali. O resto era estático. No pescoço da moça havia um colar, uma corda com nós fortes, amarrados no vão entre as telhas do quintal. 

A moça tem um nome. Se chama Mayara Kelly Araújo Bezerra. Minha prima de terceiro grau. Minha melhor amiga. Capaz de fazer uma pessoa sorrir - leia atentamente -, sorrir genuinamente na fila da padaria ou do mercado. Seu livro predileto é Nárnia. Bebia, fumava e jogava. É tia de dois sobrinhos meus. Tem um incrível intelecto para política e me disse uma frase uma vez que jamais esquecerei: "O pior ladrão é o mentiroso, ele te rouba o direito de saber a verdade." 

A moça nasceu em 27 de setembro de 1988, no dia do cantor e também no dia mundial do turismo. Ouviu essa, Caronte? No mesmo ano em que Ayrton Senna se tornou campeão mundial pela primeira vez na Fórmula 1, no ano em que teve fim da censura e da tortura, além da liberdade de expressão intelectual e de imprensa no Brasil. 1988 foi um ano bissexto, mas foda-se. A moça é a segunda filha de um casal feliz da Paraíba. A moça nasceu lá também, na cidade de Pombal, mais um município pacato do nosso país. 

A infância da moça foi simples e sofrida, o que não foi capaz de tirar a sua capacidade de transformar tudo isso em alegria. Karen, você precisava escutar as histórias que ela contava. Já escutou algumas, certo? Lá no brechó, talvez..

Conheci a moça aos 5 anos, eu acho. Não me lembro. Ela lembra. Ela saberia contar essa história melhor que eu, com certeza. Contaria com mais graça, mais detalhes. A moça sempre me falava sobre esse dia com os olhos cheios de amor. Dizia que foi onde a primozidade nasceu, essa palavra que o Word grifa de vermelho por não conhecer, essa palavra que sempre marcamos de tatuar no braço, essa palavra que escrevi em forma de coração no cimento fresco, usado pra tampar a cova da moça.

Aos 8 anos, na minha festa de aniversário, chorei por achar que a moça tinha me beijado no rosto. Corri para o beco aos prantos, indignado! E claro que a moça transformou esse momento em alegria, mesmo que 14 anos depois, sentados no tapete da sala da minha casa, assistindo a fita k7 antiga e gritando: "Olha, eu já era apaixonada por você nessa idade, seu bosta." 

Quando eu tinha uns 9, 10 anos, brincávamos de Power Rangers na garagem da minha avó. Lembro da moça chorando de rir quando meu irmão mais velho rasgou as calças, fazendo uma posição marcial, dizendo ser o ranger vermelho. Acho que foi nessa época que a moça se apaixonou pelo Felipe Cardoso, o nerd cabeçudo da mesma turma da escola. 

Aos 13, brigávamos demais. Que moça chata! Amor de infância, meu falecido avô sempre dizia. 

- Esses dois ainda vão casar, mas será o Benedito?! 

Aos 19 moramos juntos, eu e a moça. Estudávamos na mesma faculdade. Dormíamos no mesmo quarto. Fumamos os mesmos cigarros. Cantávamos o mesmo RAP aos sábados e o mesmo Reggae pela manhã, assim que acordávamos. 

"Hoje o dia amanheceu, minha vida se transformou.."

Dividimos as mesmas alegrias, as mesmas dores, as mesmas dificuldades na matéria de lógica de programação. Os mesmos amigos. A mesma rotina. Os porres. Os baseados que não gostávamos de fumar. Assistíamos Friends, Prison break e claro, o auto da compadecida. Sempre! Sempre! Sempre!

Aos 23 voltaram as brigas. Mas era uma pelejo diferente. Eu brigava pra ela vir me ver. A moça dizia que era minha vez. Eu insistia que era a vez dela, pois semana passada eu dormi na casa dela.

Ela insistia que eu era desmazelado, me faltava uma preocupação responsável que todos tinham, exceto eu. Ela dizia, Karen, que eu era a razão pelo qual shamppo's tem instruções em suas embalagens. 

[...]

19 de junho de 2018.
são 22:11 e continuo com muita saudade.


Há exato dois anos, o desespero batia em nossas portas. No meu caso, em forma de ligação.

- Alô?
- Rodrigo, aconteceu uma desgraça! - dizia uma voz cheio de dor ao telefone.
- ...

Suicídio.

Um ato intencional de matar a si mesmo, ou a própria dor que existe dentro de cada um de nós.

Escrevendo agora eu entendo, porquê, acredite ou não, depois que ela se foi, essa opção me pareceu totalmente possível e me faz comprar uma passagem só de ida para Curitiba. Eu tive a certeza que ficou um pedaço meu naquele caixão, um pedaço irreparável, incorrigível, um pedaço que eu só passei a sentir falta depois que ele arranhou minha vida ao percorrer toda a minha alma.

Karen, eu paro por aqui minha escrita. Paro porque passei a semana desnorteado, mais que o normal. Paro porque me bateu esse cansaço triste. Esse desespero ao atravessar a rua. Essa vontade de andar até as pernas bambearem de fraqueza. Sei lá.

Me perdoe te contar tudo isso por aqui, por cartas, mas a única pessoa no mundo no qual eu me sentiria confortável em conversar sobre esse luto, seria com minha prima, a Mayara.

Espero que não se importe.


Infielmente seu,
Hank.

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